12 de fev. de 2013

bento XVI deixa um legado cheio de altos e baixos



Reportagem de John L. Allen Jr., publicada pelo National Catholic Reporter, 11-02-2013. Tradução é de Moisés Sbardelotto, reproduzida aqui via IHU:

João Paulo II costumava ser conhecido como o papa das surpresas, sempre fazendo coisas que os pontífices romanos simplesmente não haviam feito antes. Com a eleição de Bento XVI, muitos acreditavam que a era das novidades papais havia chegado ao fim, já que Bento XVI sempre foi um homem de tradição, e as principais linhas do seu papado eram bastante previsíveis a partir das preocupações teológicas e culturais que ele havia manifestado ao longo de um longa vida pública.

No fim, no entanto, Bento XVI mostrou-se capaz de surpreender a todos, tornando-se o primeiro papa a renunciar voluntariamente ao seu ofício em séculos e o primeiro a fazer isso na era moderna saturada de mídia. Reconhecendo o que ele chamou de "incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado", Bento XVI anunciou que irá deixar o cargo efetivamente às 20h de Roma no dia 28 de fevereiro.

Imediatamente, a decisão de Bento XVI ganhou tanto amplos elogios como um ato responsável e humilde, quanto levantou uma montanha de perguntas. A principal delas: qual será exatamente o papel de um papa aposentado? E, naturalmente, muitos já começaram a especular quem irá captar o apoio de dois terços do Colégio dos Cardeais necessários para assumir o cargo mais alto da Igreja.

A decisão de Bento XVI também significa que o debate sobre o seu legado está oficialmente aberto agora e, assim como para todas as coisas, ele provavelmente irá esboçar vereditos muito diferentes dependendo de quem realizar a avaliação.

Considerado entre os teólogos católicos mais talentosos da sua geração, Bento XVI foi o que os historiadores da Igreja chamam de "papa ensinante", em oposição a um administrador. Sua paixão foi investida em seus documentos de ensino, seus discursos em viagens ao exterior, sua catequese regular no Vaticano e nos três livros sobre a vida de Cristo que ele publicou. Esse ensinamento muitas vezes chama a atenção das pessoas como profundas e surpreendentemente livres de margens ideológicas.

Mesmo alguns dos mais ferozes críticos do papa em outras frentes expressaram admiração.

Quando Bento XVI publicou a sua encíclica Deus Caritas Est, em 2005, sobre o amor humano, os aplausos também vieram do teólogo suíço Hans Küng, um antigo colega de Joseph Ratzinger e uma voz de liderança da dissidência católica liberal.

"O Papa Ratzinger, com o seu inimitável estilo teológico, aborda uma riqueza de temas do eros e do ágape, do amor e da caridade", disse Küng. Ele chamou a encíclica de "um bom sinal" e expressou a esperança de que fosse "recebida calorosamente, com respeito".

Muitos observadores acreditam que quatro discursos fundamentais proferidos por Bento XVI – em Regensburg, na Alemanha, em 2006; no Collège des Bernardins, em Paris, em 2008; no Westminster Hall, em Londres, em 2010; e no Bundestag, na Alemanha, em 2011 – serão lembrados como obras-primas que lançaram as bases para uma simbiose entre fé, razão e modernidade.

Se Bento XVI nunca foi o "queridinho da mídia" como o seu antecessor, mesmo assim ele se saiu admiravelmente bem na cena pública. Suas viagens atraíram multidões entusiasmadas, e a participação em suas audiências públicas, na realidade, ultrapassaram os números de João Paulo II. Ele ainda desenvolveu um toque popular, lançando a sua própria conta no Twitter e inspirando um livro infantil supostamente escrito por seu gato, Chico [Joseph and Chico: The Life of Pope Benedict XVI as Told by a Cat, de Jeanne Perego].

No entanto, para cada triunfo, o pontífice cerebral também correu precipitadamente rumo à crise.

Logo no início, o discurso de Bento XVI em Regensburg provocou o protesto islâmico por causa de sua citação de um imperador bizantino que ligava Maomé à violência. Igrejas foram bombardeadas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, enquanto uma irmã religiosa italiana foi morta a tiros na Somália. No aniversário de um ano do discurso, um padre missionário foi morto na Turquia.

Era um prenúncio do que estava por vir. Em 2011, os jornalistas italianos Andrea Tornielli e Paolo Rodari publicaram um livro de 300 páginas que documentava as crises mais notórias durante os anos de Bento XVI, incluindo:

• Os grandes escândalos de abuso sexual, que explodiram nos Estados Unidos em 2002 e depois varreram a Europa em 2010. Essa segunda onda trouxe um exame crítico do histórico pessoal de Bento XVI, incluindo um caso quando ele era arcebispo de Munique no fim dos anos 1970, em que um padre pedófilo escapou pela tangente sob a supervisão vaticana enquanto a instituição se arrastava para tomar uma atitude. Como papa, havia uma crítica persistente de que as desculpas de Bento XVI e os encontros com as vítimas não eram acompanhados pela ação, incluindo a responsabilização de bispos errantes.

• A decisão de Bento XVI em 2007 de tirar o pó da missa em latim, incluindo uma controversa oração da Sexta-Feira Santa pela conversão dos judeus. No fim, o Vaticano reviu a oração para satisfazer as preocupações judaicas, levantando a questão de por que alguém não pensou em fazer isso antes de a tempestade explodir.

• A revogação da excomunhão de quatro bispos tradicionalistas em 2009, incluindo um que negava que os nazistas haviam usado câmaras de gás e que afirmava que as provas históricas são "extremamente contra" o fato de Adolf Hitler ser o responsável pela morte de 6 milhões de judeus. O caso trouxe consigo uma angustiada carta pessoal de Bento XVI para os bispos do mundo, pedindo desculpas pela forma como foi tratado.

• Os comentários feitos por Bento XVI a bordo do avião papal para a África em 2009, no sentido de que os preservativos pioram a Aids. Dentre outras coisas, essas palavras trouxeram consigo uma primeira censura de um papa por parte do parlamento de um país europeu (Bélgica), enquanto o governo espanhol transportou um milhão de preservativos para África em protesto.

O fato de essa ser uma lista longe de estar completa é uma medida de como as coisas às vezes eram ruins.

Os autores também poderiam ter incluído a viagem de Bento XVI em 2007 para o Brasil, onde ele pareceu sugerir que os índios deviam ser gratos aos colonizadores europeus; a reação a um decreto de 2009 de aproximar da santidade o controverso Papa Pio XII, da época da Grande Guerra; e o surreal "caso Boffo", de 2010, com acusações de que altos assessores papais haviam fabricado documentos policiais falsos para difamar um jornalista católico italiano, incluindo a alegação de que ele havia assediado a namorada de um homem com quem ele ele queria continuar um caso gay.

Esse padrão atingiu um crescendo com o notório caso "Vatileaks" em 2012, envolvendo uma onda de documentos secretos do Vaticano que apareceram nos meios de comunicação italianos, em que os mais sérios apresentavam alegações de corrupção financeira e nepotismo. Uma investigação acabou com a prisão, o julgamento, a condenação e o perdão de Paolo Gabriele, um leigo italiano casado que atuava como mordomo de Bento XVI desde 2006, por ter sido a "toupeira" dos vazamentos.

Para muitos observadores, o caso capturou o Vaticano em sua postura menos edificante e fomentadora de combate, encobrimentos e desordem.

Na verdade, o histórico de Bento XVI como um administrador também incluiu alguns avanços. Em grande parte, ele nomeou pessoas de integridade pessoal para cargos de chefia; ele submeteu a Igreja a várias reformas em torno do abuso sexual; e lançou uma espécie de glasnost financeira, incluindo a abertura do Vaticano pela primeira vez à inspeção externa das suas políticas antilavagem de dinheiro. A narrativa geral de disfunção, no entanto, tornou essas histórias difíceis de contar.

Bento XVI evitou amplamente a geopolítica, raramente posicionando-se na linha de frente da história, como João Paulo II. Seu foco estava mais na vida interna da Igreja, chamando-a a um senso mais forte de identidade católica tradicional diante de uma era altamente secular. Nesse sentido, Bento XVI consolidou a direção "evangélica" mais conservadora definida por João Paulo II.

Bento XVI repetidamente denunciou o casamento homossexual, o feminismo radical e uma "ideologia do gênero", provocando a reação de grupos de mulheres, de liberais seculares e da ala mais progressista do seu próprio rebanho. Ele levou a prática litúrgica, uma paixão especial, para um sentido mais tradicional. Ao mesmo tempo, alguns aspectos do seu ensino também irritaram a direita, incluindo a sua crítica ao capitalismo e uma forte ênfase ambiental, razão pela qual foi apelidado de "papa verde".

O pontífice também trabalhou o músculo disciplinar. Uma repressão de grande porte foi lançada contra a Leadership Conference for Women Religious, o principal grupo de lideranças das ordens femininas dos Estados Unidos; teólogos liberais foram censurados, incluindo vários padres irlandeses de alto perfil e a Ir. Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia, nos Estados Unidos; e o padre norte-americano Roy Bourgeois foi excomungado devido ao seu apoio à ordenação de mulheres.

No fim, o primeiro rascunho da história talvez se resuma a isto: Bento XVI era um magnífico intelectual público, uma mistura complexa como administrador, um introvertido como estadista, e um líder da Igreja cuja "política de identidade" animou alguns e horrorizou outros.

Independentemente de qualquer outra coisa que se possa dizer, ninguém contesta que Bento XVI era um afiado crítico cultural. Ele fez perguntas perspicazes tanto para a Igreja quanto para o mundo, e ofereceu suas próprias respostas provocadoras, provando assim que o catolicismo institucional ainda tem algum gás intelectual de sobra no tanque. Nesse sentido, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, pode ter oferecido o melhor epitáfio durante a despedida ao pontífice no aeroporto de Birmingham, no dia 20 de setembro de 2010, após uma viagem de quatro dias na Escócia e na Inglaterra.

"Santo Padre", disse ele, "você nos fez sentar e pensar".

10 de fev. de 2013

o ano dos gays

"Melhor um casamento gay (alegre)
do que um casamento triste"

De Helena Celestino para o Globo de hoje:

Dos cardeais do Vaticano a escoteiros e bandeirantes, todos estão sendo obrigados a rever conceitos e, quem sabe, desfazer preconceitos. Em cada cabeça, uma sentença; em cada país, uma polêmica. No Reino Unido, uma parte do movimento gay não entende por que tanto barulho por tão pouco. Concordam que a aprovação no Parlamento do direito de os gays se casarem foi uma vitória da turma do bem; vai favorecer os casais homos, seus filhos e a sociedade de uma maneira geral. É mais uma etapa em direção à igualdade de direitos num país em que criminalização do sexo entre iguais — lei que mandou o escritor Oscar Wilde para a cadeia — só terminou nos anos 60. Mas a pergunta que não quer calar é por que o Estado tem de se meter num assunto tão privado como o amor entre duas pessoas, sejam elas hétero ou homo? Os ocidentais criticam a intromissão da lei islâmica na vida privada de mulheres e homens, mas repetem o procedimento ao legislar sobre o comportamento sexual: “Quase todas as questões envolvidas num casamento podem ser resolvidas consensualmente entre dois adultos — divisão de propriedades, obrigações e direitos de família — não precisa do Estado para ser regulamentado”, diz o ativista Sam Bowman, num texto no “Guardian”.

Na França, bem ao estilo local, o filósofo Alain Finkeilkraut, chamou de desrespeito aos gênios malditos — Rimbaud, Walt Whitman e Verlaine — a institucionalização da homossexualidade através do casamento, uma instituição burguesa. A frase — que não leva em conta o contexto histórico — foi encarada só como uma provocação, mas a discussão do casamento gay virou uma batalha filosófica sobre os diferentes conceitos de família. A direita se opõe ao projeto sob o velho argumento de que se trata de uma lei para destruir a família tradicional, aquela construída “naturalmente” por pai, mãe e filhos — vamos combinar que ela há muito recorre a procedimentos médicos para a procriação e convive com inúmeros arranjos para sobreviver. Os socialistas, patrocinadores do projeto casamento para todos, defendem a tese de que a cultura nos define tanto quanto a biologia, portanto, faz parte da vocação da humanidade se libertar das normas da natureza.

No popular, ou seja, na briga política do Congresso, os partidos de direita levaram a barriga de aluguel para o plenário, com a intenção clara de aumentar a polêmica em torno da legalização do casamento gay. A inseminação artificial numa barriga paga não é permitida na França nem está no texto do “casamento para todos”, mas virou o centro da polêmica que divide o país. Sabe-se que existe um turismo de casais gays com Kiev como destino, com a intenção de achar uma mulher para engravidar e doar o filho. Lá, na chamada capital da barriga de aluguel, por € 15 mil , há mulheres dispostas a serem inseminadas e, nove meses depois, entregarem os filhos ao casal dono dos óvulos ou do esperma.

Na França como nos EUA, existe o temor de que mulheres pobres sejam exploradas por casais impossibilitados de engravidar, mas o recurso a práticas médicas para ter filho não entra no debate do casamento gay entre os americanos. O conceito de liberdade de escolha individual impede que o Estado interfira na vida privada. Os seguros de saúde privados cobrem tratamento para engravidar de mulheres solteiras e de casais de lésbicas.

A rápida mudança da opinião pública sobre o casamento gay aconteceu tanto nos EUA quanto no Reino Unido e na França, com a maioria da população nos três países aprovando a medida, sem impedir — claro — a explosão de grandes polêmicas nas mesas de bar, no congresso ou na mídia. Para a maioria, o casamento gay entrou na lista dos direitos fundamentais para as sociedades que defendem liberdade e justiça para todos. Mas toda a polêmica vale a pena se a alma não é pequena, já dizia alguém.

Na cartesianíssima França, o Parlamento discutiu doze horas se trocava as palavras pai e mãe por pais, aumentando a polêmica criada em torno do projeto de legalização do casamento entre homens e entre mulheres. No Reino Unido, o premier do Partido Conservador, David Cameron, defendeu a formalização da união homossexual como forma de fortalecer o casamento, a instituição fundadora da família tradicional. Mais prosaicamente, nos EUA, é em nome da igualdade tributária e da autonomia dos estados que a Suprema Corte pode reconhecer a legalidade do casamento entre homossexuais em março. Os argumentos não podem ser mais diferentes, mas provavelmente 2013 ficará na lembrança como o ano dos gays.

a imprensa brasileira não é democrática


De Emir Sader, em seu blog no site da Carta Capital, ontem:

A imprensa tradicional brasileira, a velha mídia, não é democrática, de qualquer ponto de vista que seja analisada.

Antes de tudo, porque não é pluralista. Do editorial à ultima página, a visão dos donos da publicação permeia tudo, tudo é editorializado. Não podem assim ter espaço para várias interpretações da realidade, deformada esta, pela própria interpretação dominante na publicação, do começo ao fim.

Não é democrática porque não contem espaços para distintos pontos de vista nas páginas de debate, com pequenas exceções, que servem para confirmar a regra.

Não é democrática, porque expressa o ponto de vista da minoria do país, que tem sido sistematicamente derrotada, desde 2002 e provavelmente seguirá sendo derrotada. Não expressa a nova maioria de opinião política que elegeu e reelegeu Lula, elegeu e provavelmente reelegerá a Dilma. A imprensa brasileira expressa a opinião e os interesses da minoria do país.

Não é democrática, porque não se ancora em empresas públicas, mas em empresas privadas, que vivem do lucro. Assim, busca retorno econômico, o que faz com que dependa, essencialmente, não dos eventuais leitores, ouvintes ou telespectadores, mas das agências de publicidade e das grandes empresas que ocupam os enormes espaços publicitários.

São empresas que buscam rentabilidade para sobreviver. Que não se interessam por ter mais público, mas público “qualificado”, isto é, o de maior poder aquisitivo, para mostrar às agências de publicidade que devem anunciar aí. São financiadas assim pelas grandes empresas privadas, com quem tem o rabo preso, contra cujos interesses não vão atuar, o que seria dar um tiro no próprio pé.

Não bastasse tudo isso, as grandes empresas da mídia privada são empresas de propriedade familiar. Marinho, Civita, Frias, Mesquita – são não apenas os proprietários, mas seus familiares ocupam os postos decisivos dentro de cada empresa. Não há nenhuma forma de democracia no funcionamento da imprensa privada, são oligarquias, que escolhem entre seus membros os seus sucessores. Nem sequer pro forma há formas de rotatividade. Os membros das famílias ficam dirigindo a empresa até aposentar-se ou morrer e designam o filho para sucedê-los.

Tampouco há democracia, nem sequer formal, nas redações dessas empresas. Não são os jornalistas que escolhem os editores. São estes, nomeados – e eventualmente demitidos – pelos donos da empresa, os que decidem as pautas, que tem que ser realizadas pelos jornalistas, com as orientações editorializadas da direção.

Uma mídia que quer classificar quem – partidos, governos, etc. – é democrático, é autoritária, ditatorial, no seu funcionamento, tanto na eleição dos seus dirigentes, quanto na dinâmica das suas redações.

Como resultado, não é estranho que essa mídia tenha estado ferreamente contra os mais populares e os mais importantes dirigentes políticos do Brasil – Getúlio e Lula. Não por acaso estiveram contra a Revolução de 30 e a favor do movimento contrarrevolucionário de 1932 e o golpe de 1964, que instalou a mais a sangrenta ditadura da nossa história.

Coerentemente, apoiaram os governo de Fernando Collor e de FHC e se erigiram em direção da oposição aos governos do Lula e da Dilma.

Em suma, a velha imprensa brasileira não é democrática, é um resquício sobrevivente do passado oligárquico do Brasil, que começa a ser superado por governos a que – obviamente – essa imprensa se opõem frontalmente.

A democratização do país começou pelas esferas econômica e social, precisa agora chegar urgentemente às esferas politicas – Congresso, Judiciário – e imprensa. País democrático não é só aquele que distribui de forma relativamente igualitária os bens que a sociedade produz, mas o que tem representações políticas eleitas pela vontade popular e não pelo poder do dinheiro. E que forma suas opiniões de forma pluralista e não oligárquica. Um país em que ninguém deixa de falar, mas em que todos falam para todos

depois da tragédia


De Walcyr Carrasco, na Revista Época desta semana (via):

Estamos em pleno Carnaval, mas a tragédia de Santa Maria ainda ecoa nos corações. Entre um ziriguidum e outro, de repente alguém lança um olhar no salão superlotado e pergunta a si mesmo:

– E se pegar fogo?

Esperei para falar do assunto. Queria avaliar a atuação dos órgãos públicos. Aconteceu o previsto: um tsunami de fiscalização inundou o país. No Rio de Janeiro, fecharam até espaços públicos. No centro de São Paulo, em pleno Carnaval, casas noturnas tradicionais não funcionam mais. E daí?

Falou-se muito sobre um choque de fiscalização. É importante, claro. Mas queria ouvir sobre uma reestruturação mais profunda. Explico: você, em São Paulo, já tentou legalizar uma obra? A reforma de uma casa? Conseguir o carimbo de “Habite-se”? Eu já.

Certa vez, comprei uma casa no Morumbi. Enviei a planta da reforma, que nem aumentava a área já existente. Durante um ano, trabalhamos munidos apenas de um protocolo, porque a autorização não saía. Mudei. Mais um ano e ainda não conseguira legalizar a casa. Recebia avisos de “Comunique-se”. A cada um, nova exigência. Quando comparecia, eu pedia somente que todas as exigências fossem feitas de uma vez, para cumpri-las. Impossível. Gastei uma fortuna em plantas, sempre refeitas. Finalmente capitulei. Contratei um sujeito especializado no processo de aprovação de plantas. O que ele fez, eu imagino. Em 15 dias, saiu o “Habite-se”.

Imagino o que passa alguém que queira legalizar uma casa noturna. Ou teatro. Em São Paulo, é impossível legalizar um carrinho de cachorro quente. Juro. Um amigo certa vez botou na cabeça que se tornaria milionário montando uma rede de hot dog. Tipo Nova York, onde há um carrinho em cada esquina. Tentou uma licença por todos os meios. Impossível. Finalmente, o encarregado na prefeitura aconselhou:

– Desista. Isso não é para um sujeito como você. Vai ter de enfrentar muita barra-pesada.

Outra tragédia pode acontecer a qualquer momento. Vamos nos chocar. Chorar. Lamentar. Mas a mudança estrutural nem foi cogitada. É mais lucrativo deixar como está, até a próxima lágrima.O futuro empresário teimou. Comprou uma van e estacionou numa esquina com seus hot dogs. Foi ameaçado de morte por vendedores que já estavam por lá. Combinados com fiscais que vigiavam a área, o expulsaram. O hot dog é ilegal, mas os fiscais não enxergam os carrinhos quando interessa. Finalmente, meu amigo desistiu. Repassou o financiamento da van a outra futura empresária. Fez contrato de gaveta porque, legalmente, não conseguiu transferir. A compradora não pagou as prestações e ainda atropelou alguém. Ele queria fazer tudo de acordo com a lei. Mas ficou com o nome sujo, dívida nas costas e ainda respondeu a processo criminal, como proprietário oficial do veículo.

Imagino o que é montar uma casa noturna! Espaços são abertos com protocolos na mão. Inclusive restaurantes elegantes. O sujeito comprou o ponto, paga aluguel, vai esperar dois anos pela vistoria? Mais fácil se haver com fiscais que topam facilitar. O negócio começa a funcionar, e os fiscais continuam fazendo vista grossa. Vale para qualquer classe. Alguém já viu policial pagar conta em bar? O dono do estabelecimento prefere oferecer. Vai que tem alguma coisa errada? Quando acontece a tragédia, vem o choque. Por que a surpresa? Todo mundo está farto de saber que há corrupção em todos os níveis dos órgãos públicos. Convivemos com isso. Os encarregados de fiscalizar em Santa Maria responderão por homicídio? Duvido. Houve só uma gritaria, devido à pressão da imprensa. Sinceramente, nem sei se a lei permite processar o sujeito que fechou os olhos. E seus superiores, responsáveis em instância maior.

Resolver seria possível. Por exemplo: se todo o processo fosse informatizado, a planta seria entregue pela internet. Se cumprisse as especificações, o interessado poderia tirar o alvará da obra em algumas horas. A imensa cadeia de carimbos existentes para a aprovação perderia o sentido. Da mesma forma, ocorreria com as outras exigências. O alvará de funcionamento, sim, dependeria de visitas dos técnicos responsáveis, que fiscalizariam o cumprimento das regras. Se conseguiram informatizar o Imposto de Renda com tanta perfeição, por que não fazem o mesmo em relação a outras áreas?

A resposta até dói de tão simples: não interessa.

Muita gente ganha com as dificuldades. A ilegalidade se tornou regra porque dá grana.

beijo do desprezo

Erasmo, via

Artigo do Senador Cristovam Buarque publicado ontem no Globo:

Não é difícil perceber como as manchetes das revistas do último fim de semana se referem à tragédia humana da boate Kiss de Santa Maria: “Quando o Brasil vai aprender?”, “A asfixia não acabou”, “Tão jovens, tão rápido e tão absurdo” e “Futuro roubado”. É também uma tragédia que pode ser associada às escolas de todo o Brasil. É como se a boate de Santa Maria fosse uma metáfora da escola brasileira.

Na primeira delas, os jovens perderam a vida por inalar um gás venenoso; na outra as crianças perdem o futuro por não inalarem o oxigênio do conhecimento. A imprevidência de proprietários, músicos e fiscais levou à morte por falta de ar; a de políticos, pais e eleitores leva a uma vida incompleta por falta de educação. A tragédia despertou para os riscos que correm nossos jovens em seus fins de semana em boates, mas ainda não despertou para o que perdem nossas crianças e jovens no dia a dia de suas escolas.

Estamos fechando boates sem sistemas de segurança, mas ainda deixamos abertas escolas sem qualidade. Os pais começaram a não deixar seus filhos irem a boates inseguras, mas levam confiantemente suas crianças a escolas que não asseguram o futuro delas. Exigimos que as boates tenham portas de emergência, mas não exigimos que as escolas sejam a porta para o futuro das crianças.

A tragédia de Santa Maria provoca a percepção imediata da fragilidade vergonhosa na segurança de boates, mas a tragédia de nossa educação, apesar de suas vítimas, não é percebida. Isto porque ela é uma tragédia à qual nos acostumamos e nos embrutece, ou porque são crianças invisíveis pela pobreza, ou ainda porque somos um povo sem gosto pela antecipação, só ouvimos o grito de fogo e vemos a fumaça depois que matam. Por isso fechamos os olhos à tragédia da educação que hoje devasta a economia, a política e o tecido social do Brasil.

O abandono de nossas escolas não mata diretamente, mas dificulta o futuro de cada criança que não estuda. Se as escolas fossem de qualidade para todos, teríamos menos violência urbana, maior produtividade, mais avanços no mundo das invenções de novas tecnologias e um país melhor.

Por isso, ao mesmo tempo em que choramos as trágicas mortes dos jovens de Santa Maria, choremos também pelo futuro das crianças que não vão receber a educação necessária para enfrentar o mundo. Choremos pelos que perderam a vida na boate ao respirar o ar venenoso, e pelos que não vão receber nas escolas o ar puro do conhecimento.

Não vamos recuperar as vidas eliminadas na boate Kiss, podemos apenas chorar e nos envergonhar. Mas podemos evitar o desperdício das vidas que estão hoje nas “Escolas Kiss”: metáfora que une boate e escola, sobretudo, quando lembramos que a boate se chamava Kiss, nome que também deveríamos dar às nossas escolas de hoje: beijo do desprezo. Desprezo pelas vidas de jovens ou pelo futuro de nossas crianças.
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