5 de dez. de 2012

vai chover muito. e vai morrer gente. mas quem se importa?

Foto: Glenn Harper

Reportagem de Fernanda Odilla, na Folha de S.Paulo desta segunda (3), mostra que – até o fim de novembro – o governo federal se comprometeu a pagar menos da metade (48%) do planejado a programas voltados à prevenção e resposta a desastres (principalmente as causadas pelas chuvas). E, efetivamente, desembolsou 25%. Brasília reclama que os estados e municípios têm que cumprir certas exigências para receberem o dinheiro e não estariam fazendo isso.

E o prognóstico é de chuvas fortes, especialmente nas regiões Sudeste e Sul.

Um depoimento colhido na reportagem, de Fabrício Silva, do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), vale destaque: “Não vai haver chuva abaixo da média no próximo trimestre”.

É um excelente aviso às autoridades de plantão. Não adianta botar a culpa no Esqueleto, na Maga Patalógica ou em Lex Luthor. Quando (e não “se”) morrerem pessoas nesta temporada de chuvas, a responsabilidade também será de vocês por inação no tempo seco. Se as eleições fossem na época das chuvas, haveria muito pouco político reeleito.

Prestem atenção nessas duas frases que aparecem com frequência na mídia:



- Autoridades justificaram-se afirmando que, nas duas primeiras semanas de janeiro, já choveu mais do que a média do mês nos últimos anos.

- Aqui, no Carnaval de Olinda, a festa não tem hora para acabar.

O que há de comum entre elas? Bem, não muito além do fato de que são figurinhas que se repetem com impressionante regularidade. Para o repórter que transmite a folia pernambucana, a frase, quase um mantra da alegria, é indolor. Já a outra carrega, em seu bojo, duas tristezas: a consequência do aguaceiro em si e a responsabilização da natureza por algo que a ação humana poderia certamente minimizar. Se choveu mais do que deveria, fica a impressão de que não daria para fazer nada, não é?

Quanto a isso, o metereologista ouvido pela reportagem foi categórico: “Colocam a culpa na meteorologia, mas nós avisamos com antecedência. Se os governantes não tomarem providências, todo ano vai ser a mesma coisa: enchentes, carros boiando, deslizamentos”.

E não estou falando de sistemas de alertas (até porque o governo federal já avisou que vai levar anos para fazer algo que já deveria ter feito há outros anos) e sim de políticas de habitação decente, saneamento, dragagem de rios, limpeza de vias, campanhas de conscientização quanto ao lixo… Falhas neste caso custam vidas e um “foi mal, aí, não tinha como antecipar” não resolve.

Pois da mesma forma que, religiosamente, o bloco do Bacalhau do Batata vai percorrer Olinda na Quarta-Feira de Cinzas tocando frevo, o começo do ano será de atenção e preocupação.

Imaginei isso aqui, tempos atrás, neste blog: seria épico se, um dia, uma grande chuva chegasse escura no meio da tarde. Veriam, em pouco tempo, tratar-se de um pé d’água bíblico, maior que as tempestades habituais. E começasse a cair apenas sobre o Palácio das Laranjeiras, o Palácio dos Bandeirantes e as prefeituras de ambas as cidades. Poderia incluir aí também uma chuva localizada sobre a casa dos governantes. A água subiria com o lixo entupindo as bocas de lobo e inundaria tudo, encharcaria tapetes, afogaria alguns carros e arrastaria colchões.

Talvez, com isso, fossem implantadas ações habitacionais e de saneamento para amenizar o sofrimento desse povaréu, que foi empurrado para as várzeas, vales de rios e encostas de morros pela especulação imobiliária e a pobreza. Dividindo a mesma situação, talvez enxergassem no outro não apenas um personagem da matéria da TV ou um voto. Afinal, com aqueles que foram assassinados pelo descaso, morre junto um pouco de todos nós e de nossa dignidade. Não pergunte por quem os sinos dobram. Os sinos dobram por ti.

Nas chuvas que assolaram o Rio em 2010, o prefeito do Rio Eduardo Paes criticou os “demagogos” que reclamavam da retirada de populações de áreas de risco na época da seca. Tá, mas a prefeitura queria retirá-los de lá sem uma opção de moradia? O fato é que expulsar é mais fácil, ainda se for para mais longe onde esse povinho não pode reclamar (quiçá, se Deus quiser, fora do município…) e tome vale-coxinha para pagar o aluguel! Na mesma época, ouvi um apresentador de TV dizer algo do tipo “não interessa para onde o pessoal retirado vai, isso não é problema do Estado”. Ah, é? É de quem então? Depois disso, Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro, afirmou: “Educar também é dizer não. Não se pode habitar essas áreas.” Que tal uma paráfrase? “Governar também é dizer sim. Sim, vamos priorizar a construção de moradias dignas para as famílias que nada têm não precisem habitar essas áreas.” O que esses políticos têm na cabeça que falam mais abobrinhas nessa época do ano? É a umidade, é? Alguém acha que o povo gosta de morar em encosta de morro, que é legal ter que viver no único lugar em que ninguém mais quer por falta de opção?

Não precisamos de governantes otimistas, que acreditam na possibilidade de chover menos, ou de administradores religiosos, que rezam por uma trégua dos céus, terceirizando a responsabilidade para o Sobrenatural. E sim de gente realista, que tem o perfil de alguém que espera sempre o pior e age preventivamente, não culpando as forças do universo pelo ocorrido, muitos menos a estatística e a metereologia.

O assunto é o oposto, mas a ideia a mesma: durante uma reportagem no interior de Alagoas, em 1999, um homem me contou a história de uma menina que jazia num porta-retratos na sala de sua casa. Os anos se passavam e sua filha cismou em ficar do mesmo tamanho. Talvez por causa da água e da comida. Ou da falta de ambos. Certo mesmo é que adoeceu. Ele, desesperado, correu de um lado para o outro e levou-a para se tratar. Diarréia, disenteria, olhar longo, profundo, perdido. Os doutores fizeram o que podiam e mandaram-na de volta para casa. Naquela tarde, rastejou pelo chão da sala, agonizando. Maria avisou ao marido que a criança estava indo embora. Mas sabiam que de nada adiantaria, pois há tempos a fome vinha comendo-a por dentro. Então, José, resignado, foi à cidade fazer a única coisa que estava ao seu alcance: pedir uma caixão emprestado. Quando voltou, a filha já estava morta.

Lendo essas mazelas do mundo, que romperam uma vez como tragédia e vão se repetindo como farsa, ano após ano, a gente sabe que certas coisas vão acontecer.

Mas quem se importa?

- Leonardo Sakamoto, em seu blog

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...