6 de dez. de 2012

o discurso que culpa a vítima

Encontrei a TED Talk aí em cima neste excelente tratado sobre feminismo para leigos, aqui

Aproveitando o ensejo do vídeo acima, a Lola publicou hoje um bom texto sobre o tema ("Façamos o melhor para não criar estupradores" - leia na íntegra aqui):

"Quando meus filhos eram pequenos, eu e meu marido nos esforçamos em sempre focar num comportamento de empatia. Todos nossos filhos são como esponjas. Quando o seu filho é pego brigando com outra criança por ter que dividir um brinquedo e você pergunta 'Como você se sentiria se alguém batesse em você?', você está ensinando seu filho a não pensar somente em si mesmo. Quando você ensina empatia a crianças, você está evitando que elas se tornem adultos narcisistas, uma desordem que boa parte dos especialistas acredita estar presente na grande maioria dos estupradores. É preciso usar a mídia em seu favor. Quando seus filhos forem expostos a conteúdos violentos ou abusivos contra mulheres em filmes, videogames e música, você precisa parar e explicar a eles porque este conteúdo é errado. Também é necessário ensiná-los a respeitar mulheres e tratá-las com igualdade. Assim, se seu filho de 9 anos disser que uma menina da sua classe se veste como uma 'vadia', você deve chamar sua atenção, e explicar a ele que o modo como uma mulher se veste não é indicação nenhuma do valor dela como ser humano nem um indício de sua personalidade. (...)

Dizer aos nossos filhos 'não estupre' não é suficiente. É necessário incluir muitos outros tópicos nessa discussão. Diga a ele: não repasse fotos íntimas que você receber de garotas para seus amigos. Não diga grosserias a meninas que passam por você na escola. Não dê álcool ou drogas para meninas em festas esperando que isso aumente as chances de que elas fiquem mais receptivas sexualmente. Não veja meninas e mulheres como seres sexuais desprovidas de intelecto, sentimentos e alma. Não chame meninas de vacas, vadias ou qualquer palavra similar. Não deixe seus amigos fazerem isso."

Leia também: "A cultura do estupro", aqui

* * *


Toronto, Canadá, 28 de setembro: ação anual dos homens 

"Ande uma milha em seus sapatos", de combate à violência
contra a mulher e a discriminação sexual. (Via)Gostou? Veja também este site. 

E sobre o tal discurso que culpa a vítima:

(...) ainda na graduação de Psicologia, tive a oportunidade de estagiar numa Vara de Infância e Juventude. O trabalho era puxado, mas sempre sobrava tempo praquele momento do café, onde todos os estagiários, e mesmo os orientadores, se reuniam pra conversar sobre suas impressões dos casos e outros tantos assuntos... Uma característica nessas conversas, no entanto, começou a me incomodar. Diante dos casos de violência sexual, não era raro que fossem ditas coisas como “Ah, mas com aquela roupa, pediu pra ser estuprada!”; “Mas também, olha aonde ela tava!?”; “Ah, ela deu em cima dele. Já tem idade pra saber o que está fazendo!”; “Mas ela não tem nenhuma marca?”.

Eu chegava a argumentar e apontar que este não era o caminho pra se pensar a questão, mas confesso que poucas vezes obtinha sucesso. Resolvi transformar meu incômodo no meu trabalho de conclusão de curso e desde 2009 venho tentado, então, compreender esse discurso que ao invés de acolher, acusa a mulher vítima de violência sexual. Hoje, no mestrado, tenho trabalhado mais especificamente com a reprodução desse discurso no âmbito jurídico.

Esses comentários, que eu ouvia nas conversas na hora do café, não são exclusividade daquele local (poderia justificar que estou falando de uma cidade do interior do Espírito Santo), ou ainda, característico da "mentalidade" daquelas pessoas. Na verdade, essas explicações refletem um julgamento (compartilhado socialmente) sobre as vítimas de violência sexual a partir do local que frequentam, da roupa que usam, das suas companhias. Esses depoimentos exemplificam como se perpetua a cultura sexista, que valida a violência contra mulheres. É como se o fato de a vítima estar viva, e de certa forma sem muitos sinais de violência, significasse que ela não tivesse resistido o suficiente ou, ainda, que de alguma forma ela tivesse colaborado pro que houve (através de um comportamento sedutor, por exemplo).

Algumas teorias tentam dar conta do assunto através de perspectivas diferentes (honra, representação social, valores, tradicionalismo, gênero, entre outras). Uma, dentre essas, me chamou atenção. Proposta por Martha Burt em 1980, a teoria de Mitos de Estupro afirma que esses mitos referem-se a um conjunto de crenças, que servem para sustentar e perpetuar a violência sexual contra as mulheres, e estão relacionados a questões como os estereótipos de gênero e desconfiança de um sexo para com o outro.

Esses mitos acabam por embasar um discurso que culpa a vítima e absolve, simultaneamente, o agressor. Acabam, ainda, por minimizar e justificar a agressão cometida contra a mulher através de afirmações sobre os comportamentos que deveriam ter sido apresentados por ela.

O que se percebe é que nas questões relacionadas à sexualidade, os preconceitos e estereótipos sociais direcionados à mulher se tornam ainda mais significativos -– o que se reflete, por exemplo, na forma como a polícia e/ou o Judiciário tratam o tema.

Comparando-se práticas jurídicas de um século atrás com práticas jurídicas atuais, observa-se que mesmo a violência sexual sendo considerada um crime hediondo, para muitos operadores do Direito continua a ideia de que tal tipo de violência é cometido apenas contra “mulheres honradas” (virgens, muito jovens, idosas, mulheres que resistiram fisicamente), enquanto outras raramente farão parte deste grupo -– e não serão percebidas, portanto, como vítimas ‘genuínas’. Ou seja, mulheres incapazes de cumprir as ditas regras sociais que “definem o bom comportamento feminino” não pertenceriam ao grupo das "vítimas reais" (prostitutas, por exemplo, estariam excluídas). Assim, não é incomum que seus depoimentos sejam sumariamente descartados e que essas mulheres sejam vistas como culpadas, não vítimas.

Lembro de, durante esse processo de tentativa de compreensão do fenômeno, ter tido acesso a sentenças onde juízes alegavam que pelo fato de a mulher não ser mais virgem, a violência não teria sido algo tão traumático (como ela queria fazê-los acreditar), ou que (também pelo fato de a mulher ter vida sexual ativa) a relação havia sido consensual e que, portanto, não havia crime a ser julgado. Outros chegaram a fazer com que a vítima pagasse indenização ao agressor -– uma vez que a reputação dele havia sido manchada.

Para além desses problemas, um outro ponto que considero pertinente levantar é que tal discurso não é proferido apenas por homens, mas também por mulheres, inclusive pelas próprias vítimas. Mulheres que, contaminadas por um discurso patriarcalista, internalizaram a culpa e passam -- ou continuam -- a permitir (e, em alguns casos a incentivar) o exercício de relações baseadas em concepções naturalizantes e a-históricas. Concepções estas que viabilizam que a hierarquia de gênero seja justificada e exercida através do domínio do masculino sobre o feminino.

Compreender o fenômeno requer tempo e muita, muita discussão. São diversos os fatores que influenciam na maneira como a vítima (principalmente adulta) de violência sexual seja tratada. O assunto não se esgota aqui. Seria impossível dar conta de tantas questões em tão pouco tempo e espaço. Considero, no entanto, que a principal questão aqui e neste momento, é que precisamos compreender que esses discursos (bem como os sentimentos de culpa de muitas das vítimas) não têm relação apenas com o ato da violência em si.

São, na verdade, fruto de um contexto social que construiu, ao longo do tempo, um estereótipo do que é o feminino, qual o seu lugar e função social. Discurso que acaba por dar sentido ao ato violento, alimentando-o e fazendo-o sobreviver. Discurso que relega à vítima um lugar de marginalidade. Somente através de espaços de discussão e debate é que poderemos romper barreiras e transformar uma cultura sexista como a nossa em uma cultura baseada no respeito e cuidado com o próximo. E pensando especificamente neste tema, somente assim poderemos oferecer acolhimento e tratamento adequado à vítima e a seu agressor.

- Arielle Sagrillo Scarpati (arielle.psicologia@gmail.com), em guest post para a Lola

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